Por Renato Cortez
Se há uma pergunta que ecoa pelos corredores do tempo, assombrando tanto o crente devoto quanto o cético convicto, é esta: “Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?”
Esta não é uma pergunta moderna. É uma questão antiga, talvez a mais antiga de todas. E em nenhum lugar ela é tratada com tanta honestidade, complexidade e profundidade teológica quanto no Livro de Jó.
A história de Jó é, em sua essência, o maior tratado do mundo sobre o problema do mal e a natureza da fé. Para muitos, a história termina com “Jó perdeu tudo, reclamou, e Deus devolveu em dobro”. Esta é uma simplificação perigosa. Reduzir Jó a uma fábula sobre paciência e recompensa material é perder o gênio teológico da narrativa.
Este livro não nos dá uma resposta fácil. Na verdade, ele destrói respostas fáceis. O propósito do Livro de Jó é demolir nossa teologia de “caixa de entrada e saída” – a ideia de que se formos bons, Deus nos abençoará, e se sofrermos, é porque pecamos.
Vamos desvendar, camada por camada, a história de Jó, não apenas como um evento histórico, mas como um drama teológico que se desenrola em três palcos: a terra, o céu e o interior da alma humana.
O Palco da Prova: Quem Era Jó? (Jó 1:1-5)
A história começa estabelecendo, sem sombra de dúvida, as credenciais do protagonista. O texto não nos dá espaço para especulação sobre o caráter de Jó.
“Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e era este homem íntegro, reto e temente a Deus e desviava-se do mal.” (Jó 1:1)
A Escritura usa quatro termos para selar seu caráter:
- Íntegro (Tam): Completo, perfeito, sem falhas visíveis.
- Reto (Yashar): Certo, justo em suas ações.
- Temente a Deus (Yare): A raiz de sua moralidade. Ele não era “bom” por convenção social; ele era “bom” por causa de sua reverência a Deus.
- Desviava-se do mal (Sur): Uma decisão ativa de evitar o pecado.
O texto então detalha sua bênção (Jó 1:2-3). Ele era “o maior de todos os homens do oriente”. Sete filhos, três filhas, sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas.
Aqui, a história arma a armadilha teológica perfeita. No pensamento antigo (e, sejamos honestos, no moderno “evangelho da prosperidade”), a riqueza de Jó era a prova de sua justiça. Sua vida era o exemplo máximo da Teologia da Retribuição: Faça o bem, receba o bem.
Para completar, Jó não era apenas justo em público; ele era piedoso em particular. Ele se preocupava tanto com a santidade que oferecia holocaustos por seus filhos, pensando: “Porventura pecaram meus filhos, e blasfemaram de Deus no seu coração.” (Jó 1:5).
Jó é o “caso de teste” perfeito. Ele é o melhor que a humanidade tem a oferecer. Se a fé de alguém é pura, é a de Jó.
O Conflito Celestial: A Aposta que Define a Trama (Jó 1:6 – 2:10)
A cena muda abruptamente da terra para o céu. Esta é uma das passagens mais teologicamente densas de toda a Bíblia. Temos um vislumbre raro da sala do trono celestial.
H3: O Acusador entra em Cena
Os “filhos de Deus” (provavelmente anjos) se apresentam perante o SENHOR, e no meio deles vem “o Satanás” (em hebraico, ha-satan).
É crucial entender quem é essa figura. O hebraico ha-satan não é um nome próprio (como “Lúcifer”), mas um título. Significa “O Acusador” ou “O Adversário”. Ele funciona como um promotor celestial, cuja função é testar a integridade da criação.
Deus mesmo inicia a conversa sobre Jó. É Deus quem aponta para seu servo: “Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele…” (Jó 1:8).
A resposta de Satanás é o cerne de todo o livro:
“Porventura Jó teme a Deus debalde?” (Jó 1:9)
Esta é a acusação. “Debalde” significa “por nada”, “sem motivo”. Satanás está dizendo: “Jó não Te ama, Deus. Ele ama o que Tu dás a ele. A fé dele é mercenária. Ele é um ‘cristão por interesse’. Remove a ‘cerca de proteção’ (Jó 1:10) – a bênção, a riqueza, a saúde – e ele Te amaldiçoará na Tua face.”
A aposta é estabelecida. A questão não é se Jó pecou. A questão é: A fé humana genuína pode existir independentemente da bênção? Deus é digno de adoração por quem Ele é, ou apenas pelo que Ele faz?
Deus, confiante em Seu servo (e em Sua própria graça sustentadora), dá a permissão. O limite é estabelecido: “Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão; somente contra ele não estendas a tua mão.” (Jó 1:12).
H3: A Primeira Onda de Calamidade
A execução do plano é brutal em sua velocidade e totalidade. Em um único dia, quatro mensageiros chegam, cada um trazendo uma notícia pior que a anterior (Jó 1:13-19):
- Mensageiro 1: Os sabeus levaram os bois e as jumentas; mataram os servos.
- Mensageiro 2: “Fogo de Deus” (um raio) caiu do céu e queimou as ovelhas e os servos.
- Mensageiro 3: Os caldeus levaram os camelos e mataram os servos.
- Mensageiro 4: Um grande vento derrubou a casa, matando todos os seus dez filhos.
Em questão de horas, Jó perde sua riqueza (fonte de sustento) e seus filhos (fonte de seu legado e alegria). Ele está financeiramente arruinado e emocionalmente devastado.
A resposta de Jó no capítulo 1 é o ponto alto da fé humana:
“Então Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a sua cabeça, e se lançou em terra, e adorou. E disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR.” (Jó 1:20-21)
O texto conclui: “Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.” (Jó 1:22).
Satanás perdeu a primeira rodada. A fé de Jó provou ser mais profunda que suas posses e sua família.
H3: A Segunda Rodada: “Pele por Pele”
A cena celestial se repete (Jó 2:1-6). Deus novamente aponta para a integridade de Jó. Satanás, o promotor incansável, dobra a aposta.
“Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida. Estende, porém, a tua mão, e toca-lhe nos ossos e na carne, e verás se não blasfema contra ti na tua face!” (Jó 2:4-5).
A nova acusação é que a fé de Jó é baseada em seu bem-estar pessoal. “Ele aguentou perder os filhos, mas se a dor for nele, ele cederá.”
A permissão é concedida, com um novo limite: “poupa-lhe a vida.” (Jó 2:6).
Imediatamente, Satanás “feriu a Jó de úlceras malignas, desde a planta do pé até ao alto da cabeça.” (Jó 2:7). Ele se torna um pária, sentado em cinzas (um sinal de luto extremo), raspando suas feridas purulentas com um caco de telha.
Agora, o ataque final vem de onde ele menos espera: sua esposa. Vendo seu marido, outrora o maior homem do oriente, reduzido a uma massa de dor e miséria, ela diz: “Ainda reténs a tua integridade? Amaldiçoa a Deus, e morre.” (Jó 2:9).
A tentação dela é sutil: “Sua integridade não valeu nada. Esse ‘temor a Deus’ não te protegeu. Abandone essa fé inútil e pelo menos morra com alguma dignidade.”
A resposta de Jó é firme: “Como fala qualquer doida, falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?” (Jó 2:10).
O texto conclui novamente: “Em tudo isto não pecou Jó com os seus lábios.” (Jó 2:10).
Satanás está derrotado. O prólogo termina. A fé de Jó sobreviveu.
Mas a história mal começou.
O Abismo do Silêncio e o Início do Lamento (Jó 2:11 – 3:26)
O prólogo em prosa dá lugar ao corpo principal do livro: um longo e denso poema hebraico.
Três amigos de Jó – Elifaz, Bildade e Zofar – ouvem sobre sua tragédia e vêm consolá-lo. Este é, talvez, o melhor ato de consolo pastoral em toda a Bíblia:
“E, levantando de longe os seus olhos, não o conheceram; e choraram, e rasgaram cada um o seu manto, e sobre as suas cabeças lançavam pó ao ar. E assentaram-se com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande.” (Jó 2:12-13)
Eles praticaram a “teologia da presença”. Eles não ofereceram respostas fáceis. Eles não disseram “Deus tem um plano” ou “Tudo coopera para o bem”. Eles apenas sentaram-se em silêncio e compartilharam sua dor.
Foi o melhor que fizeram. O problema começou quando eles abriram a boca.
Após sete dias de silêncio, é Jó quem o quebra. E o que sai de sua boca não é louvor. É um lamento profundo e sombrio.
O Capítulo 3 de Jó é um dos textos mais angustiantes da literatura. Jó não amaldiçoa a Deus (cumprindo sua promessa), mas ele amaldiçoa o dia em que nasceu.
“Pereça o dia em que nasci…” (Jó 3:3) “Por que não morri eu desde a madre?” (Jó 3:11) “Porque agora estaria deitado e quieto; dormiria, e então haveria repouso para mim.” (Jó 3:13)
Jó está no fundo do poço da depressão existencial. Ele não entende o porquê. Sua dor é tão grande que a morte parece um alívio bem-vindo. Ele não está pecando; ele está sendo brutalmente honesto sobre sua dor.
É essa honestidade que seus amigos não suportam. O lamento de Jó ofende a teologia organizada deles.
A Desconstrução da Teologia da Retribuição (Jó 4-31)
O que se segue são três ciclos de discursos. É uma batalha teológica. De um lado, Elifaz, Bildade e Zofar, defendendo a Teologia da Retribuição. Do outro, Jó, defendendo sua inocência.
O argumento dos amigos é simples e, para eles, irrefutável:
- Deus é perfeitamente justo.
- Justiça significa que Deus abençoa os justos e pune os ímpios.
- Jó está sofrendo terrivelmente.
- Conclusão: Portanto, Jó (ou seus filhos) deve ter cometido um pecado terrível e secreto.
Eles não são homens maus. Eles estão tentando defender a honra de Deus. O problema é que a teologia deles é muito pequena. O universo deles é limpo e ordenado: faça A, receba B. O sofrimento de Jó quebra essa fórmula. Se Jó é justo e está sofrendo, então o universo deles não faz sentido.
Para salvar seu sistema teológico, eles precisam sacrificar Jó. Eles preferem acreditar que Jó é um hipócrita do que acreditar que Deus é… complicado.
H3: Elifaz, o Místico (Cap. 4-5, 15, 22)
Elifaz é o mais velho e o mais “gentil”. Ele baseia seu argumento na experiência pessoal e na revelação mística.
- Argumento: “Lembra-te agora: qual é o inocente que pereceu?” (Jó 4:7). Ele apela para a tradição: os bons não sofrem assim.
- A “Revelação”: Ele conta uma história assustadora sobre um espírito que lhe disse à noite: “Seria porventura o homem mais justo do que Deus? Seria porventura o homem mais puro do que o seu Criador?” (Jó 4:17).
- O Conselho: “Confesse, Jó. Você deve ter pecado. Ninguém é perfeito. Apenas admita, e Deus o restaurará.” (Jó 5:17).
- A Acusação Final (Cap. 22): Quando Jó se recusa a confessar, Elifaz inventa pecados para ele: “Não foi grande a tua malícia? (…) Davas ao cansado água a beber, e ao faminto negavas pão.” (Jó 22:5-7).
H3: Bildade, o Tradicionalista (Cap. 8, 18, 25)
Bildade não tem a “gentileza” de Elifaz. Ele é um legalista rígido que se baseia na tradição e na lógica de causa e efeito.
- Argumento: “Se teus filhos pecaram contra ele, ele os lançou na mão da sua transgressão.” (Jó 8:4). Esta é uma das falas mais cruéis do livro. Ele basicamente diz: “Seus filhos mereceram morrer.”
- A Tradição: “Pergunta, pois, às gerações passadas… porque nós somos de ontem, e nada sabemos.” (Jó 8:8-9). Ele apela para a sabedoria dos antigos.
- A Lógica: “Porventura Deus perverteria o juízo?” (Jó 8:3). Para Bildade, é simples: Deus é justo, você está sofrendo, logo, você pecou. Fim de papo.
H3: Zofar, o Dogmático (Cap. 11, 20)
Zofar é o mais raivoso e dogmático. Ele não se baseia na experiência ou na tradição, mas no zelo doutrinário puro.
- Argumento: “Quem dera que Deus falasse… Então entenderias que Deus te imputa menos do que merece a tua iniquidade.” (Jó 11:5-6). Ele diz a Jó: “Você não está sofrendo o suficiente! Seu pecado é tão grande que você merecia coisa pior!”
- A Doutrina: Zofar não tem compaixão. Ele apenas recita a doutrina da punição dos ímpios (Cap. 20). Para ele, Jó é um caso perdido.
“Eu Sei que o Meu Redentor Vive”: A Defesa de Jó
Enquanto os amigos atacam, Jó não fica calado. Seus discursos (Jó 6-7, 9-10, 12-14, 16-17, 19, 21, 23-24, 26-31) são uma mistura complexa de dor, confusão, sarcasmo e uma fé que se recusa a morrer.
Jó faz duas coisas simultaneamente:
- Ele defende sua inocência perante seus amigos.
- Ele exige uma audiência com Deus.
Jó está lutando em duas frentes. Ele sabe que seus amigos estão errados, mas ele não entende por que Deus está em silêncio. Ele se sente traído por Deus.
“Porque as flechas do Todo-Poderoso estão em mim, cujo veneno suga o meu espírito.” (Jó 6:4)
“Se eu pecar, que te farei, ó Guarda dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para ti?” (Jó 7:20)
Jó está desesperado. Ele sabe que a teologia dos amigos está errada, porque ela não corresponde à sua realidade. Ele sabe que é inocente dos crimes de que o acusam. Isso o leva a uma crise de fé, não na existência de Deus, mas na justiça de Deus.
Ele quer levar Deus ao tribunal. “Ah, quem me dera saber onde eu poderia achá-lo! Então me chegaria ao seu tribunal.” (Jó 23:3).
E então, no meio de sua dor mais profunda, no capítulo 19, Jó tem um vislumbre de esperança que se torna uma das declarações de fé mais poderosas da Bíblia:
“Porque eu sei que o meu Redentor (Go’el) vive, e que por fim se levantará sobre a terra. E depois de consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros, o verão.” (Jó 19:25-27)
No fundo de seu poço, Jó percebe que a única solução para seu problema não é uma explicação, mas um Vingador (Go’el, o Parente Resgatador). Ele percebe que, mesmo que morra sem justiça, haverá um Redentor que vindicará sua causa. É um vislumbre profético de Cristo.
No capítulo 31, Jó faz seu juramento final de inocência. Ele passa por uma lista de pecados (cobiça, adultério, injustiça com servos, falta de caridade) e se amaldiçoa se for culpado de qualquer um deles. Ele joga sua última carta.
E a resposta é… silêncio.
O Interlúdio de Eliú: Uma Nova Perspectiva? (Jó 32-37)
De repente, um novo personagem aparece: Eliú. Ele é jovem e estava em silêncio por respeito aos mais velhos, mas agora está irritado (Jó 32:2-3):
- Ele está irritado com Jó, “porque se justificava a si mesmo, e não a Deus.”
- Ele está irritado com os três amigos, “porque, não achando que responder, contudo condenavam a Jó.”
Eliú oferece uma quarta perspectiva. A teologia dele é mais sofisticada que a dos amigos.
- Os Amigos disseram: O sofrimento é punitivo (punição por pecados passados).
- Eliú diz: O sofrimento pode ser pedagógico (ensino) ou preventivo (para evitar pecados futuros).
“Deus fala… em sonhos… para apartar o homem do seu desígnio… Ele é castigado com dor na sua cama… Eis que tudo isto obra Deus duas e três vezes para com o homem, para apartar a sua alma da cova.” (Jó 33:14-30).
Eliú argumenta que Deus está usando a dor para refinar Jó, para ensiná-lo, para falar com ele de uma forma que a prosperidade não poderia.
Isso é um avanço. É uma teologia mais próxima da verdade (ver Hebreus 12). No entanto, ainda é a sabedoria humana tentando decifrar os caminhos de Deus. Eliú, como os outros, presume saber por que Jó está sofrendo. E ele também está errado sobre o motivo específico (o teste celestial).
O discurso de Eliú (Cap. 32-37) termina com uma descrição vívida do poder de Deus na natureza, culminando em uma tempestade. E é dessa tempestade que Deus finalmente fala.
O Redemoinho: Quando Deus Finalmente Responde (Jó 38-41)
Depois de 37 capítulos de silêncio, Deus fala. E sua resposta é, talvez, a parte mais chocante do livro.
Jó exigiu respostas. Ele queria saber por quê. Ele queria uma explicação para sua dor.
Deus não responde a uma única pergunta de Jó.
Ele não explica o desafio de Satanás. Ele não fala sobre o “propósito” da dor. Ele não diz “Jó, foi um teste”.
Em vez disso, Deus responde a Jó com uma série de perguntas. São mais de 70 perguntas retóricas que colocam Jó em seu devido lugar. A resposta de Deus é, essencialmente, uma inversão da pergunta. Jó perguntou “Por quê?”. Deus responde: “Quem é você?”.
“Então o SENHOR respondeu a Jó de um redemoinho, e disse: Quem é este que escurece o conselho com palavras sem conhecimento? Agora cinge os teus lombos, como homem; e perguntar-te-ei, e tu me responderás. Onde estavas tu, quando eu fundava os fundamentos da terra?” (Jó 38:1-4)
O que se segue (Cap. 38-41) é um “tour” pela criação. Deus pergunta a Jó se ele entende de cosmologia, oceanografia, meteorologia, astronomia e zoologia.
- “Você já deu ordens à manhã?” (38:12)
- “Você entrou nos tesouros da neve?” (38:22)
- “Você pode caçar a presa para a leoa?” (38:39)
- “É pela sua sabedoria que o falcão voa?” (39:26)
Deus está demolindo o antropocentrismo (a ideia de que tudo gira em torno do homem). Ele está mostrando a Jó que o universo é vasto, complexo, selvagem e não foi feito apenas para o conforto humano.
H3: O Beemote e o Leviatã
A parte mais estranha do discurso de Deus é a descrição de duas criaturas: o Beemote (Jó 40:15-24) e o Leviatã (Jó 41).
O Beemote (provavelmente um hipopótamo ou uma criatura mítica que representa força bruta) é descrito como uma obra-prima de Deus, poderoso e indomável pelo homem.
O Leviatã (um crocodilo ou, mais provavelmente, um símbolo mítico do caos primordial) é a peça central. Deus gasta um capítulo inteiro descrevendo esta criatura aterrorizante, indestrutível e incontrolável. A lição é clara:
“Ninguém há tão atrevido, que a ele se atreva; quem, pois, é aquele que pode permanecer perante mim?” (Jó 41:10)
O argumento de Deus é este: “Jó, você não consegue nem entender, muito menos controlar, o Leviatã, a criatura que representa o caos no Meu mundo. Você acha que tem a capacidade de entender a complexidade moral do Meu universo? Você acha que pode administrar o mundo melhor do que Eu?”
Deus não explica o sofrimento de Jó. Em vez disso, Ele revela Sua soberania e sabedoria. A resposta para o sofrimento não é uma explicação, mas uma pessoa. A resposta é o próprio Deus.
A Transformação de Jó: “Agora os Meus Olhos Te Veem” (Jó 42:1-6)
A resposta de Deus funciona. Jó, finalmente, entende.
Ele não recebe uma resposta para o porquê de sua dor, mas ele recebe o que realmente precisava: uma revelação de quem é Deus. E essa revelação é suficiente.
A resposta final de Jó é uma das passagens mais importantes da Bíblia:
“Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido. Quem é este, que sem conhecimento encobre o conselho? Por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram maravilhosíssimas, e que eu não compreendia.” (Jó 42:2-3)
E então, a confissão que muda tudo:
“Eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora os meus olhos te veem. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza.” (Jó 42:5-6)
Do que Jó se arrependeu? Ele não se arrependeu de pecados secretos, como os amigos queriam. Os amigos estavam errados.
Jó se arrependeu de sua arrogância. Ele se arrependeu de ter presumido que poderia entender Deus, de ter levado o Criador do universo ao seu tribunal humano. Ele passou da teologia (saber sobre Deus) para a relação (ver* a Deus).
Ele trocou sua exigência por respostas por uma confiança humilde na sabedoria soberana de Deus.
O Epílogo: Restauração e Justiça (Jó 42:7-17)
A história volta à prosa para o epílogo, e ele contém uma última reviravolta teológica crucial.
Deus se vira para Elifaz e os amigos, e o que Ele diz é impressionante:
“A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó.” (Jó 42:7)
Pense nisso. Os amigos passaram 30 capítulos “defendendo” Deus, Sua justiça e Sua santidade. Jó passou 30 capítulos gritando com Deus, acusando-O de injustiça e silêncio.
E no final, Deus diz: “Jó estava certo, vocês estavam errados.”
Deus preferiu o lamento honesto e brutal de Jó às platitudes piedosas e à teologia falsa de seus amigos. Deus validou a luta, a dúvida e a dor de Jó. Ele nos deu permissão para sermos honestos em nosso sofrimento.
Deus então ordena que os amigos ofereçam um sacrifício, e diz que “o meu servo Jó orará por vós” (Jó 42:8). Jó, o sofredor, torna-se o intercessor de seus acusadores.
H3: A Restauração
O livro termina com a famosa restauração:
“E o SENHOR virou o cativeiro de Jó, quando orava pelos seus amigos; e o SENHOR acrescentou, em dobro, a tudo quanto Jó antes possuía.” (Jó 42:10)
Note o timing. A restauração não veio quando Jó se arrependeu. Veio quando ele demonstrou graça e orou por aqueles que o feriram.
Ele recebe o dobro de ovelhas, camelos, bois e jumentas. Ele também recebe sete filhos e três filhas (o mesmo número de antes, não o dobro, pois os primeiros filhos não foram “substituídos”, mas ainda existiam na eternidade). E suas novas filhas foram as mulheres mais belas da terra, recebendo herança como seus irmãos.
Jó vive mais 140 anos, vê quatro gerações de seus descendentes e morre “velho e farto de dias”.
Isso é um retorno à Teologia da Retribuição? Deus está dizendo: “Viu, no final das contas, se você aguentar, eu te dou suas coisas de volta”?
Não. A restauração não é um pagamento. Não é um contrato. A restauração é um ato de graça soberana. Deus não devia nada a Jó. A restauração não é a razão para a fé; é o resultado da graça de um Deus que, embora soberano e incompreensível, também é profundamente bom e redentor.
Conclusão: Lições da Tempestade para Nós Hoje
A história de Jó não resolve o problema do mal. Ela o coloca em perspectiva. O que aprendemos no final desta jornada monumental?
- Deus Prefere a Honestidade à Piedade Falsa: Deus validou o lamento de Jó e rejeitou a teologia “certinha” dos amigos. Temos permissão para lutar, para gritar, para perguntar “Por quê?”. A fé verdadeira não é a ausência de dúvida; é a persistência da fé apesar da dor.
- A Teologia da Retribuição é Falsa: O Livro de Jó é a demolição bíblica do evangelho da prosperidade. A vida não é uma transação. Bênçãos não são um sinal de retidão, e sofrimento não é (necessariamente) um sinal de pecado.
- Deus Está no Controle, Mesmo do Caos: A permissão dada a Satanás e a descrição do Leviatã nos mostram que nada – nem o mal espiritual, nem o caos natural – está fora da soberania de Deus. Ele não causa todo o mal, mas Ele o usa e o limita para Seus propósitos insondáveis.
- A Resposta para o Sofrimento é uma Pessoa, não uma Explicação: Jó não recebeu um memorando explicando o motivo de sua dor. Ele recebeu uma visão de Deus. No final, a presença de Deus é a única resposta que pode sustentar a alma na dor.
- Jó Aponta para Cristo: Jó é o sofredor inocente por excelência. Ele intercede por seus acusadores. Ele anseia por um “Redentor” (Go’el). Ele é um tipo de Cristo, que sofreu injustamente, que se sentiu abandonado pelo Pai (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”), e que, através de seu sofrimento, trouxe redenção.
O Livro de Jó nos convida a abandonar nossa necessidade de respostas fáceis e a abraçar uma fé madura. Uma fé que pode dizer “o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou” (Jó 1:21) e também “agora os meus olhos te veem” (Jó 42:5).
É uma fé que confia na sabedoria do Soberano, mesmo quando Sua mão parece pesada e Seu rosto, oculto.
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